Eu e Eles


Amanda não sabia o que era dançar. Sabia que tinha um dom, mas só conhecia seu paladar. E praquilo ela era ótima; provava comidas de todos os gostos, nutrientes de todos os credos. Não contava para as amigas sobre seu secreto prazer. Trancava-se no quarto ao som de Ravel enquanto saboreava um Gross gatêau.

O violino do irmão, encostado na parede, perdia seu tom devido às teias. E aquele som agudo só ecoava nas memórias de Amanda. A menina se preocupava com provas, trabalhos, relatórios... E o tempo voava. Lembranças são como fumaça, pensava.

Embora intocado, o Violino permanecia ali, no canto, escorado na parede desbotada e semi-encoberto pelas cortinas cinza encardidas datadas de 1950. Era o único presente que remanesceu do seu Irmão. A última batida de coração que pulsava num intervalo infinito, e Amanda vivia a espera da batida final.

Amanda morava longe de todos e todos os dias acordava cedo, muito cedo. Tão cedo que o Sol não se punha pra Amanda; era Sol o dia inteiro, 24 horas por dia. Ou 25, por que Amanda fazia o dia durar mais, não me perguntem como. Um dia acordou cedo pra pegar o ônibus da escola e não reparou que no canto onde havia um Violino, só havia poeira.

Na escola aprendeu muita coisa importante. Muita coisa. Importante. Aprendeu a contar, aprendeu a falar, aprendeu a brigar. Talvez não tenha aprendido a brigar na escola. Ou talvez nunca tenha aprendido a brigar, mas foi lá que aprendeu a raspar. Sim, raspar. Raspava tudo que via pela frente. Raspava o resto, raspava o começo, raspava a cabeça. Só não raspava a barba, por que não tinha.

Nesse dia raspou uma garota. E era uma raspa bem medíocre mesmo, coisa de gente pobre. Amanda nunca tinha raspado uma garota antes. Não por medo, a verdade é que ela nunca teve oportunidades de raspar nenhuma pessoa até então. Raspava o tacho da panela, raspava a perna sob o banho, raspava até as bordas de seu quarto – que era maior que sua casa e nem assim ficava menor – mas nunca raspara ninguém. E ali estava ela, raspando uma menina. E se apegou de tal forma àquilo... Que parecia doença.

A menina raspada ficou puta da vida, é claro. Espalhou pela escola o quanto Amanda era inescrupulosa, falsa. Chamou-a de meretriz na frente dos colegas. Raspou qualquer conceito de piedade e jogou no lixo. Amanda foi julgada. E no final a menina – vítima de Amanda – recuperou sua raspa. Muito alarde à toa. A culpa coube a Amanda e a raspa coube à paciente.

E quando chegou a casa e percebeu que o violino se fora, seu mundo desabou. A música acabou. Nunca mais dançaria ao som de seu Irmão mais velho. Nunca mais invadiria prédios, quebraria janelas, bateria portas. Não havia mais sabor a ser raspado. Parou de comer, emagreceu, morreu.

E a raspa da garota da escola, voltou a ser raspada novamente. Uma raspa não se atém à matéria primária depois de arrancada, e só Amanda saberia disso, por que Amanda sabia das coisas. Amanda sabia das coisas e ficou calada.